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Feminismo

 Creio poder definir feminismo, em filosofia, como o estudo do status da mulher na sociedade quanto a seus direitos e deveres, e do papel social que lhe é adequado. Como Ser que é, a mulher, como todos os seres, tem os seus predicados. O seu papel social será adequado se corresponder logicamente – por necessidade lógica – a esses predicados.
Até o início do século XX, cabia inquestionavelmente à mulher ocupações relacionadas, direta ou indiretamente, à maternidade, ou seja, amamentar os recém-nascidos e alimentar e educar as crianças, o que implicava no estafante trabalho de cuidar da casa. Ao homem, cabia prover a alimentação da família com seu trabalho, e ir todo o ano à guerra na qual perdia a vida (havia centenas de ducados, principados, etnias, etc. continuamente em conflito entre si), ou da qual retornava mutilado.

A política – constantemente girando em torno de disputas locais, desavenças regionais e guerras internacionais; a ciência errática e assistemática até o século XIX; e a religião do Estado e vinculada às guerras (As cruzadas, a Guerra dos 30 anos, a defesa dos estados pontifícios em que vários Papas disputaram batalhas pessoalmente, e outras), eram  assuntos estranhos à mulher. No entanto, além dos vultos femininos marcantes da história antiga e medieval, na história moderna e contemporânea várias mulheres foram governantes, como Isabel I da Inglaterra e Cristina da Suécia, ou foram inspiradoras, como Clotilde De Vaux e Bertha Pappenheim, ou exemplos de espiritualidade esclarecida, como Madame Acarie e Chiara Lubich, ou figuras de expressão na filosofia, como Simone de Beauvoir e Madame de Staël, ou nas artes, como Johanne Luise Heiberg, citando apenas entre aquelas figuras cujas biografias já estão vinculadas às páginas de filosofia deste Site.

Essa posição do homem e da mulher foi sempre aceita como resultado de um consenso natural, da mesma natureza do consenso que, no entender dos filósofos, conduziu ao primitivo contrato social para criar um governo que garantisse justiça, e proteção contra o inimigo. O consenso social em relação ao status da mulher estabelecia sua responsabilidade social segundo as responsabilidades imanentes a seus predicados de maternidade e sentimento inato de amor e proteção dos filhos.

Se a honra ou nobreza do homem estavam ligadas à defesa da pátria, a honra da mulher estava em manter e defender os valores sociais na educação dos filhos, e em sua atividade doméstica exemplar.

No último terço do século XIX e no século XX, o grande progresso tecnológico veio alterar um status milenar. Os equipamentos e facilidades modernas (saneamento, distribuição domiciliar de água e encanação do gás, congelamento de alimentos, etc.) eliminaram grande número de tarefas domésticas. Também reduziram o esforço e o tempo necessário para execução de muitas outras, e – o que foi o mais importante –, permitiram um nivelamento do requisito de aptidões: colocaram tarefas até então exclusivamente masculinas factíveis por mulheres em grande número de setores, inclusive militar (portar uma metralhadora que pesa 2 quilos e meio não exige o mesmo esforço que combater metido em uma armadura de ferro de 70 quilos). Ao mesmo tempo, a expansão econômica que acompanhou a modernização tecnológica contribuiu para trazer a mulher a novas atividades, por necessidade de mão de obra.

Em pouco tempo eram legiões de moças solteiras empregadas em escritórios e fábricas, bibliotecas e serviços públicos. As mulheres casadas juntaram-se às trabalhadoras quando os orfanatos passaram a prestar cuidados diaristas a crianças e bebês, surgindo dessa adaptação instituições novas: as “creches” e os “jardins da infância”. Os pais podiam sustentar a estrutura tradicional do lar tendo os filhos à noite e nos fins de semana em sua companhia.

Mas a quebra daquela delimitação das funções, que era precisa e de longo tempo aceita, não foi vista por todos como devida naturalmente à modernização do trabalho tanto doméstico como assalariado. Muitos viram na pretensão feminista uma descaracterização do Ser feminino, uma masculinização, como se a mulher pretendesse exibir predicados masculinos, repudiando os femininos. Por essa razão foram necessárias árduas campanhas em favor de uma nova mentalidade – para que a mulher pudesse ter o novo status que aspirava – e ainda se batalha para que receba o salário justo pelo seu trabalho.

Direito de voto. Com sua maior participação no panorama econômico, era justo e mesmo necessário que a mulher participasse também das decisões políticas tomadas no controle da economia e do bem estar social. Surgiu o movimento sufragista feminino (pelo direito do voto).

Sendo de fundo econômico, era natural que o movimento sufragista tivesse origem simultânea nos dois paises economicamente mais desenvolvidos: Inglaterra e Estados Unidos. Na França, apesar da significativa participação das mulheres na Revolução Francesa – episódio que foi um marco histórico para os Direitos Humanos – foram isoladas as vozes femininas reivindicadoras do direito ao voto. Na época, o problema que preocupava eram os maus tratos que os homens embrutecidos davam às suas mulheres e filhos. As feministas, e inclusive os intelectuais que se condoíam com a situação, escreviam contra a estupidez masculina, e prescreviam como remédio melhor educação para homens e mulheres.

A importância da revisão do status feminino não escapou ao filósofo John Stuart Mill (1806-1873), que publicou, em co-autoria com sua esposa Harriet Taylor Mill (1807-1856) o livro Submition of the woman, em 1869. Eles não enfocaram a educação, mas o direito de voto.

Grandemente traduzido e divulgado em diversos países, o livro dos Mill, pela sua oportunidade e pelo seu novo enfoque, causou grande impacto: era necessário revogar as leis originárias do poder absoluto dos reis e do domínio das consciências pela Religião oficial do Estado, e vencer a inércia das próprias mulheres pois, na opinião do filósofo, sem a contribuição feminina o progresso do país ficaria comprometido. Em 1867 nasceu a primeira associação feminista em prol do direito de voto, a National Society for Woman’s Suffrage, liderada por Lydia Becker. Em 1919, com o apoio do presidente democrata Wodrow Wilson, foi aprovada nos Estados Unidos a XIX Emenda Constitucional que concedia o direito de voto às mulheres.

Na Inglaterra, no entanto, as próprias mulheres se organizaram contra o voto feminino, reconhecendo o perigo que era para a família tradicional a alteração do status feminino na sociedade. Uma forte reação foi desencadeada pela Women's National Anti-Suffrage League (Liga Nacional ante-sufragista) contra o voto feminino, liderada por uma escritora muito lida, Mary Ward. Porém a premência econômica, sobretudo pelo esforço demandado dos britânicos na sustentação da primeira guerra mundial (1914-1918) e a demanda de mão de obra na recuperação econômica do pós-guerra, terminariam por derrubar quaisquer barreiras à mudança do status feminino. Dez anos depois, em 1928, o direito de voto foi concedido às mulheres britânicas.
Países não desenvolvidos. A situação econômica onde o desenvolvimento exigiu a incorporação da mulher ao trabalho e à política não acontecia nos países não desenvolvidos como o Brasil. Com uma economia de caráter colonial, o catolicismo como religião oficial do Estado, prevalecia sólido o status tradicional já referido – que remontava aos gregos – do homem ocupado com as guerras e revoluções, o sustento do lar e a discussão política nas praças e nos cafés, e da mulher encarregada da educação dos filhos e dos cuidados domésticos. Essa sociedade decadente alimentava o ócio, a boemia, a imoralidade, e a crueldade masculina sobre a mulher e os filhos. Mudanças só aconteceriam a muitas penas.

É nesse quadro de atraso que se realiza, em São Paulo, em 1922, a Semana de Arte Moderna, com o objetivo de sacudir a opinião pública e incentivar o progresso no campo cultural em favor de uma mudança de hábitos e de valores sociais. A Semana serviu para maior projeção de figuras femininas admiráveis na época, e que contavam já com o respeito do público, sem que, no entanto, fosse reivindicado objetivamente pelo movimento um novo status para a mulher. À mesma época, uma voz modernista – isolada do grupo de artistas que proporcionava ao público os shows realizados no Teatro Municipal  – Ercília Nogueira Cobra vituperava, em linguagem radical, contra a hipocrisia religiosa e a estupidez masculina que vitimavam a mulher brasileira, obrigando-a a reprimir sua libido, atentado capaz de comprometer seu equilíbrio mental. O título de seu livro, Virgindade anti higiênica, refere-se à "higiene mental", uma expressão cunhada por uma corrente da psiquiatria no primeiro quarto do século XX.
Campanhas assumidas. Os movimentos feministas prosseguiram com energia ao longo de todo o restante do século XX. A campanha pelo direito de votar fora uma causa legitimamente feminista, respectiva ao status social da mulher, porém o movimento assumiu várias campanhas que diziam respeito à mulher, mas que não tinham objetos legitimamente feministas, por não afetarem apenas – nem principalmente – os interesses femininos.
A campanha pelo direito de abortar, por exemplo, não é legitimamente feminista porque a questão maior é o direito à vida do indivíduo uterino, a começar da questão de a partir de quando no feto existe, de fato, um indivíduo. É o mesmo direito que terá, ou não, um laboratório de inseminação in vitro de descartar embriões não aproveitados.
A campanha contra a mutilação sexual de meninas através da remoção do clítoris, e também a mutilação dos meninos pela circuncisão, práticas adotadas por certas religiões do Oriente, dizem respeito ao sacrifício humano consumado em um certo grau, e deveriam ser tratadas como tal antes de, no caso da mulher, ser uma questão feminista.
Rubem Queiroz Cobra            
Doutor em Geologia e bacharel em Filosofia

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